Damião Ramos Cavalcanti

Enquanto poeta morrer, a poesia haverá de viver

Textos



“Douta Ignorância”

          Na cidade onde vivemos, as coisas acontecem como nas outras do país; não adianta trocar de cidade para mudar-se o dia a dia, sem que haja mudanças em nós mesmos. Daí a interrogação “Dove credi di andare” (Aonde acreditas ir) na canção do italiano Sergio Endrigo, cujo verso nos aclara uma verdade singular: “Il mondo non è più grande di questa città/ La gente si annoia ogni sera come da noi”... (O mundo não é maior do que esta cidade/ As pessoas se aborrecem todas as noites como entre a gente ...). Também, por tais razões, aqui e alhures, sonha-se, sem descanso, acordar milionário do dia pra noite. Quando as portas das loterias ostentam a faixa de “acumulada”, de repente se formam longas filas à procura da sorte.
         
          Também é verdade que na nossa cidade não se tem notícia de quem tenha ganhado a bendita “mega sena” acumulada. Milhares jogam, muito mais do que os que procuram a sorte no “jogo do bicho”; exceto os cansados pela “má sorte”; os que se justificam pela prática da sua religião avessa aos jogos de azar; os radicais convencidos pelo ardor cívico de que “só se ganha, trabalhando”; enfim,  os que não jogam para não perder o que já ganharam. No entanto, há até os que contam e recontam a piada do avaro que maldizia a Providência por nunca ter sido contemplado pela sorte, mas sem nunca ter jogado. Esses piadistas, mesmo achando difícil ganhar, jogam afirmando: “só ganha quem joga”. Difícil é! Tão difícil como, por escolha, um meteoro acertar a sua cabeça. Tanto é assim que, quando todo o país joga, repetidamente ninguém acerta; acumula.

          Não sei se em vida verei algum conterrâneo se escondendo dos sequestradores ou mudando de cidade porque foi enriquecido por tal bilhete milionário. Também não sei por qual razão intitulei essa crônica com o famoso paradoxo que denomina a obra filosófica de “douta ignorância”, escrita por Nicolau de Cusa, nos tempos renascentistas, tratando de Deus por analogias matemáticas e do Ser Máximo; do universo como unidade da multiplicidade e da noção de verdade; de Jesus, o máximo contraído e absoluto e da coincidência dos opostos. Talvez o caro leitor tenha descoberto a relação de “douta ignorância” com esse assunto. Contudo, sei que viver jogando ou procurando meios incertos ou escusos de vida sem honestamente trabalhar não é uma douta sabedoria...
Damião Ramos Cavalcanti
Enviado por Damião Ramos Cavalcanti em 22/11/2012
Alterado em 26/11/2012


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