Damião Ramos Cavalcanti

Enquanto poeta morrer, a poesia haverá de viver

Textos


                            Ano Velho, um rio no mar
 
          É constrangedor acompanhar um rio que vem minguando, minguando, míngua, até morrer, antes de atingir o mar. Nasceu desejando chegar ao seu destino. Desceu montanhas, caminhou por planícies, enfrentou pedras, contorcendo-se, como uma serpente, sob o Sol causticante, diminuindo-lhe as águas. As nuvens passaram rapidamente, carregadas pelo vento, negando-lhe qualquer gota de chuva. E ele foi secando, secando, até mostrar aos vendedores seu branco leito, feito de areia. Mais longe estava o mar, aonde ele se dirigia, mas, fatigado, como uma serpente atingida por qualquer pancada, por algum incêndio, tornou-se rio morto. Mesmo temendo ser engolido pelo mar, há rios que prosseguem; talvez embevecidos e estimulados pela vaidade de se tornarem mar ou mesmo oceano, convencem-se do que a natureza lhes dita: “Todo rio corre para o mar”; e assim eles vão, continuam. Alguns esmorecem antes de chegar, preferem ser afluente ao desparecerem na imensidão do mar.
          As coisas da natureza se assemelham à natureza, sobretudo as que têm vida. As que não têm vida, como as pedras, são semelhantes aos não viventes. Os viventes se movimentam, demonstrando essa característica do movimento. E os rios, que saem da fonte ao mar, num certo sentido, também se movimentam. Mesmo quando morrem antes do fim, saem do lugar, afastam-se da origem, movidos pela inclinação da montanha, pelo volume das águas, façam essas cachoeiras ou apenas uma simples corrente, tão simples como a que brota de um olho d’água. Foi essa perene correnteza que inspirou o filósofo Heráclito a pronunciar a famosa dialética do “panta rei”, ou que você não molha seus pés uma única vez, quando você está dentro do rio, seus pés são lavados inúmeras vezes por novas águas.
Repito que as coisas da natureza contêm umas características semelhantes, sendo que a maior de todas é a que todas são natureza. Analogicamente, o rio e o tempo, em certos aspectos, achegam-se às coisas idênticas, e isso se reflete na passagem ao Ano Novo. O ser humano marca o tempo para medir a sua existência em seus sinais e em seus marcos. O ano que passou parece com o rio que já se entregou ao mar, que desapareceu em baixo das águas salgadas, uns até com o nome de “rio doce”.
          O ano passado entrou de mar adentro, restando-nos apenas a memória de que, talvez, tenhamos das coisas, dos fatos e das pessoas, com as quais convivemos nas águas dos anos anteriores. São muitas coisas, porque o tempo, continuamente, sempre cumpre o seu percurso, mesmo que tenhamos fixado que, em tal dia, este ano iniciou e que, no próximo 31 de dezembro, ele terminará. Como estivéssemos no meio do rio que passa, molhando os pés nas suas águas, estamos, cheios de desejos e esperanças, em 2020, no ano que apenas inicia como o rio, da sua origem. Serão dias, sem distâncias de léguas ou quilômetros, mas será apenas um só tempo. E cada um de nós, nadando como pode, tenta viver além das chegadas de muitos anos. E cada ano será um rio que entrará no mar e se perderá na sua imensidão. Assim, quanto ao tempo deste ano, ele findará dentro do próprio tempo, do tempo infinito, bem maior do que o mar ou o oceano. Mas, o que fazer? Diante do mar, o rio não pode regressar à fonte... 
Damião Ramos Cavalcanti
Enviado por Damião Ramos Cavalcanti em 03/01/2020
Alterado em 03/01/2020


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