Damião Ramos Cavalcanti

Enquanto poeta morrer, a poesia haverá de viver

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                                                                                                                                                                                                                                                                              Dolorida picada de lacrau ou escorpião

           Metade do corpo desse bicho tem essa finalidade: Essa parte não foi feita para embelezar a natureza, existe para picar. Os ferrões têm uma finalidade: ferroar; se não picar, perde ele identidade, não é escorpião. Foi assim seu compromisso com o sapo: Não picar. Mas depois que atravessou à outra margem do rio, ferroou o bondoso sapo que lhe emprestou o dorso à travessia, justificando-se: - Se eu não te picasse, não seria escorpião. Mesmo quando está hibernando, escondido no escuro, em qualquer buraco ou dentro do seu sapato, ele está esperando a hora certa de atacar. Dizem que tem o tempo de aparecer; engana-se quem assim pensa, de repente, surpreende-nos como fruta azeda fora de época, sua estação é a ausência de luz. Nos momentos de bom sono, ele está debaixo do seu travesseiro ou cobrindo-se com o seu lençol.
          Os escorpiões se não odeiam, também não amam, tampouco se amam: No acasalamento, praticam um ritual festivo, porém macabro; agarram-se pelas pinças, como se fosse uma luta ou curiosa dança, e após consumarem o ato, se faminta, a fêmea literalmente come o macho. Nem por isso, obedecendo ao instinto, os machos não deixam de procurar as fêmeas.

          Há quem calce o sapato para ele não ferretoar os seus pés. Mas, quando ele quer, ele já está lá: camuflado no calor da meia enrolada, aguardando o seu pé ou sua mão. Ninguém se oferece ao escorpião, ele aguarda, pacientemente, a oportunidade para picar as pessoas mais inocentes, como crianças, idosos ou os mais generosos dos adultos. São predadores por natureza como muitos da nossa humanidade, da qual alguns se metamorfoseiam em escorpião, deixam de ser gente para ser bicho, e até mais maldosos do que esses animais, ao ponto de se cantar “a maldade dessa gente é uma arte”...

          Esse peçonhento e temido animal, há cerca de 350 milhões de anos, é perseguido, mas nunca extinto; protege-se como pode da sua perseguida extinção. O escorpião metamorfoseado em gente não precisa de proteção, pois, carrega maldade pelo resto da vida, somos nós que corremos o risco, precisando de vigilantes cuidados do seu veneno. Vezes outras, é comparado com outro ofensivo animal, como o fez Plauto (254 – 184 a.C.), chamando-o de “lobo do próprio homem”, o que foi aprofundado pelo filósofo Thomas Hobbes, na sua obra Leviatã: Homo lupus homini. Não sei lhe dizer o que é mais dolorido: se uma venenosa picada de um escorpião ovado ou se uma mordida de lobo. Quanto aos escorpiões ou aos lobos mais provincianos do nosso convívio, caro leitor, previna-se, simulados, eles se parecem com a gente. Contudo, leia nos nossos jornais ou veja na nossa mídia, claramente eles atacam com as mãos ou ferem com a língua...
               Ninguém gosta de ser chamado de escorpião, a não ser se tiver esse signo, que não é um dos melhores, mas não tem características malévolas. Também porque talvez o escorpião signo trate de coisas promissoras e boas ad futurum; se predisser alguns presságios, sejamos otimistas, são eles apenas dificuldades passageiras que conduzirão a momentos felizes. O escorpião invertebrado não pensa, age por agir ou pica por picar, sem considerar as consequências. Mas o vertebrado lacrau humano, ao contrário, não pica em vão, deleita-se ao observar o efeito do seu veneno. Os escorpiões estão por aí, especialmente no frisson das concorrências profissionais, no corredor estreito do mercado do trabalho.  Os experientes, que já sofreram dores, avisam aos incautos: “Quem de escorpião foi picado teme a escuridão, ou até a sombra o espanta”.   

Damião Ramos Cavalcanti
Enviado por Damião Ramos Cavalcanti em 28/05/2023
Alterado em 28/05/2023


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