Damião Ramos Cavalcanti

Enquanto poeta morrer, a poesia haverá de viver

Textos


 CRÔNICAS - Damião Ramos Cavalcanti

                          Arribaçãs no meu jardim

     Vez por outra, eu via, pelas ruas de Itabaiana, homens vestidos dos seus troféus. Simples, calças de mescla sujas de barro, enfiadas em velhas botas arranhadas pelos gravetos da mata. Camisas brancas de mangas compridas, mesmo com a poeira e o cheiro de suor das últimas caçadas. No pescoço, um colar de arribaçãs, exibindo o resultado da habilidade no tiro. As coisas eram assim.  Não havia IBAMA para atrapalhar as exímias pontarias. Entravam à loja do meu pai Inácio para oferecer-lhe aquela popular iguaria. “ – Matou muito?”  Respondiam com disfarçada vaidade: “ - Que nada! As rolinhas andam se escondendo.  Se não, o bornal ‘tava’ cheio.” Mesmo assim, em vez de vendê-las, num gesto de fartura, esbanjavam algumas delas: “  - Tome umas pra tira-gosto.”   Eu já sabia que teria de sair correndo ao Alto dos Currais para minha mãe Lia prepará-las com “macaxeira,  da mole”.  Uma “comida de rei”.  Entre um olhar e outro para as aves amarradas como se fosse corda de caranguejo, meu pai alisava os chumbos que carregava no braço esquerdo, atingido por descuido, numa das caçadas, nos tempos da Una de São José.
    
Um dia, fui convidado pelo amigo Raul Xavier Filho para acompanhar o pai dele numa caçada de lambu, em Guarita, em Odon Sá. Pensei que não fosse vingar aquele convite de menino. Contudo, aconteceu, várias vezes, essa proeza de espiar, ao lado desses famosos caçadores, o lambu alçando voo do mato rasteiro e sendo derrubado com tiro certeiro da espingarda de cartucho. Sem palavras, as risadas diziam o sucesso dessa matuta olimpíada. Somente me abusavam os pedidos de silêncio do velho Raul, em tom de carão: “- Fique calado! Psiu!... Para vir, faça como o cachorro! Mudo!” O divertido era o apito, imitando o canto nambu. Saber como matar esta ave dava-me menos pena do que ver as rolinhas mortas, às vezes, já depenadas para facilitar a venda. Em segredo, alegrava-me quando perdiam o tiro, e o lambu levantava voo, subindo rápido, distanciando o barulho das asas, mostrando vida no céu.
     
Hoje, vejo, nos meus jardins, mansas arribaçãs catando pedra, desacostumadas com o espanto do tiro da pólvora e do chumbo dos caçadores.  À tardinha, aproveitam as gotas d’água que sobram das flores, das plantas. Explica-me o meu vizinho, doutor Ivan Régis, que elas vêm de longe, fugindo da seca do sertão até ao litoral. São arribaçãs sertanejas, como pombo-correio, noticiando sinais de que para elas o mar já virou sertão.

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Damião Ramos Cavalcanti
Enviado por Damião Ramos Cavalcanti em 06/06/2010
Alterado em 20/06/2010


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