Damião Ramos Cavalcanti

Enquanto poeta morrer, a poesia haverá de viver

Textos


Sobre matar e comer humanos
    

 
     Quando meninos, a aula impactante da História do Brasil discorria sobre o ritual de canibalismo dos índios caetés que comeram o “primeiro bispo do Brasil, Dom Pero Fernandes Sardinha, cujo navio, de regresso a Portugal, naufragou nas costas da foz do rio Coruripe, em Alagoas”. O fato de terem comido um bispo, eminente mandatário da Igreja no Brasil, deixava-nos perplexos, ouvindo o relato desse ato desrespeitoso, então considerado pelos colonizadores como de “indígenas inimigos da civilização”. Por outro lado, pensavam esses “incivilizados” antropófagos que, ingerindo o prelado, assimilariam suas boas qualidades. O curioso é que os livros didáticos, ao tratar dos mártires da pátria, oficialmente esquartejados e tendo cabeças e membros pendurados nas esquinas da cidade, não causavam tanto impacto.
 
     Recentemente, duas mulheres e um homem foram presos como canibais de uma “seita de admiração à morte e de purificação” e que haveriam praticado canibalismo em Pernambuco, nos municípios de Olinda e Garanhuns e, quem sabe, na Paraíba, na cidade do Conde. Tais crimes suscitaram veemente repúdio da opinião pública e atenções da mídia, cuja repercussão nacionalmente continua. Observam-se reações muito maiores do que as relacionadas a bárbaros assassinatos e chacinas na nossa sociedade, com a diferença de que, nessas carnificinas, os criminosos rejeitam os mortos e não os cozinham para a refeição.

     Desde a dita aula a posteriores leituras sobre a antropofagia dos caetés com as carnes do bispo Sardinha, perguntamo-nos: Por que tanta repulsa à ingestão de carne humana e não propriamente ao crime de matar pessoas? Afinal de contas, em 1972, quando o avião da “Fuerza Aerea Uruguaya” caiu no Vale das Lágrimas da Cordilheira dos Andes, com 45 passageiros, alguns deles atletas do “rugby Old Cristians”, os dezesseis sobreviventes, depois de dias de fome e frio, comeram carne dos amigos falecidos para sobreviverem, circunstância que justificou o canibalismo. Já em Pernambuco, os canibais, sem necessidade, mataram para comer. Hoje, cruéis assassinatos, praticados por motivos fúteis, não despertam tanta ojeriza como a de comer carne de gente. Ora, matar se sobressai como o maior crime desses três canibais e não o de comer suas vítimas ou aproveitá-las em forma de empada. Enfim, nosso medo em vida é o de ser morto, não o de ser queimado e comido depois da morte. 
 
Damião Ramos Cavalcanti
Enviado por Damião Ramos Cavalcanti em 26/04/2012
Alterado em 26/04/2012


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