Cartas, selos e lembranças
Encontrei uma caixa de sapato cheia de cartas, há anos recebidas, e de selos usados; perto, a balancinha de pesar cartas quando morava longe de casa, no outro lado do mundo. Lembrei-me da boa sensação de abrir o envelope, deitado no chão ou numa rede; dos amigos e das amigas que me escreveram do outro lado das águas. Imaginei a carta numa garrafa, jogada no mar, navegando para longe, talvez a um desconhecido destinatário, sem direito ao carimbo “devolva-se ao remetente”. Assim, também se escrevia ao homem ou à mulher, ao velho ou à criança, ao pescador ou ao poeta; aos marinheiros que deixavam namoradas nos cais acostáveis da conquista; talvez a quem encontrasse esse envelope de vidro, boiando nas ondas, ao lado do barco, sobrevivendo nas águas salgadas, entregue ao destino ou rolando, pra cima e pra baixo, na areia da praia; conservada pelo sal, descoberta pelo brilho do sol ou da lua, mas tendo como destino o acaso.
Hoje, carta anda em desuso, mesmo ainda existindo pessoas amadas e amantes, espera-se em vão o grito do carteiro. Exceções dadas às publicidades, pedidos de voto, cobranças, cartas de banco ou de intimações judiciárias. Não se escrevem mais palavras desinteressadas de amizade como era no passado. A pressa, ocupações insignificantes forçaram-nos à linguagem telegráfica do e-mail, às mensagens telefônicas, sintéticas ou à voz metálica do robô; criam-se abreviações de um idioma mal falado, sem pontuação, concordâncias e beleza literária. Lamentavelmente, morre a carta e parem miúdos pedaços de efêmero recado.
A carta, com notícias, é esmagada pelos noticiários televisivos. Acabaram-se as cartas que substituíam a coragem de manifestar pessoalmente a paixão, de desfazer solidão ou de revelar confissões. A carta fetiche, beijada no lugar do amante; a carta lida, relida, que dormia debaixo do travesseiro e, de manhã, era guardada numa pequena caixa, sob sete chaves. Já vimos carta amassada por carinhos e abraços, borrada por lágrimas, e também devolvida, após o namoro que acabou. As mulheres, mais do que os homens, preferem, aos gestos galanteadores, palavras no ritual da sedução, carta de compromisso, de declaração escrita, repetidamente proporcionando-lhes fascínio e prazer. Observo que o romantismo está em extinção; e, com isso, desaparecem as cartas para dar lugar aos diálogos virtuais. Com o fim da carta, some parte dos romances e das poesias. Que as cartas continuem vivas, mesmo que atiradas à imensidão do oceano.
Damião Ramos Cavalcanti
Enviado por Damião Ramos Cavalcanti em 15/08/2014
Alterado em 15/08/2014