Damião Ramos Cavalcanti

Enquanto poeta morrer, a poesia haverá de viver

Textos


               
                                                                       
                                    Sinos, Rendas e Rezas

          A pequena cidade, de cujo nome não estou certo, mas talvez fosse chamada de Inocência, fica perto do rio que secou. E, à medida que lhe faltava água, aumentava a fé do seu povo, rezando para cair a chuva, sonhando com os tempos de cheia, apelando que chegasse logo o dia de São José. Enchia-se aquele pequeno lugarejo de procissões, que saíam e voltavam à pequena capela que, por ser única, chamava-se de “igreja”, sim, era a igreja da cidade, aonde quinzenalmente vinha um padre, de outra freguesia, celebrar a missa e ouvir confissões daqueles penitentes sofredores da seca. Uma dessas vindas sempre coincidia com a primeira sexta-feira do mês, quando se elevavam às preces ao padroeiro, o Sagrado Coração de Jesus. Durante esses cultos, homens usavam roupas simples, algumas delas até feitas de madapolão que variava de cor entre branco e bege. As mulheres, mesmo com vestidos de chita ou apenas de algodão branco, carregavam no peito uma medalha do padroeiro, pendurada numa larga fita vermelha. Mas, o que ostentavam de beleza nas suas “indumentárias” era a mantilha, feita em “renda renascença” pelo famoso artesanato da cidade. As mulheres rendeiras tinham mais posses - em virtude das suas produções, vendidas às grandes cidades - do que os homens com os seus minguados roçados, castigados durante a longa estiagem.
         Fazia gosto o zelo que os fiéis tinham pelos três altares, sempre forrados por toalhas brancas de labirinto. Os três sinos alemães, em tamanhos diferentes, foram trazidos por um padre holandês, que chegou ao lugarejo, assim que a pequena igreja foi construída. Ele tinha espírito missionário, mas o calor sertanejo mortificava sua pele de gringo, abandonando a missão, para ir morar num lugar mais frio. Os sinos ficaram como lembrança e, quando tocavam, seus sons atravessavam a cidade, chamando ao culto até os moradores de uns espalhados distritos da vizinhança. Seus toques eram respeitados até numa ruela do meretrício; calavam as blasfêmias de dois ateus, que se mostravam zombadores dos que tinham confiança em Deus. Eram lindos sinos, num amarelo reluzente, parecidos de ouro, quando acertados pelos raios do sol causticante.
          Um certo dia, aconteceu uma inesperada desgraça: às caladas da noite, homens, indistintos pelo escuro, chegaram num velho caminhão e roubaram o sacrário, as toalhas de labirinto e os três sinos, silenciados por cobertores. A população inteira rogou praga aos malfeitores, imploraram a ira divina, que nunca caiu dos céus. Como compreender misericórdia a um pecado tamanho? Tudo poderia haver, menos esse insulto ao que se tinha de mais sagrado. Sem os sinos, como os fiéis seriam chamados aos seus deveres religiosos? Cada alma daquela terra já tinha, dentro de si, seu “sino de ouro”. E, de repente, isso foi corrompido...  Foi-se a hospitalidade, todo forasteiro era visto com espantosa desconfiança, como se viesse com intenção de levar o restante, os santos da igreja. O povo daquele lugarejo continuou louvando a Deus, manso, humilde, mas sem perdoar os que mancharam a dignidade do seu templo, como se fosse coisa da era pagã. Com o tempo, a cidade foi sendo abandonada pelas gerações mais jovens, e os mais velhos, esquecidos desses acontecimentos.
               
                                                     
Damião Ramos Cavalcanti
Enviado por Damião Ramos Cavalcanti em 31/01/2020
Alterado em 31/01/2020


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