Esquentando nossos tambores
A política pública da Cultura, na Paraíba, acertou em cheio, ao se voltar mais às atividades interioranas, onde mais se preservam os costumes e os valores culturais. E foi assim que aconteceram revelações, até de ordem mística, de se concentrarem atenções especiais ao resgate e à valorização das culturas indígena, cigana e quilombola, palavras emblemáticas do Plano de Cultura. Bateu-se o bombo e pronto! E tanto faz bater o bombo como “nossos tambores”, o zabumba dos quilombolas. Dessas culturas, a mais nômade é a da etnia cigana que percorreu terras pelo mundo inteiro, durante séculos e séculos; quem menos andou foi a cultura indígena, nativa, aqui já encontrada no seu berço, quando os portugueses disseram ter descoberto o Brasil, apenas gritando “terra à vista”. Enfim, no meio, está a belíssima cultura quilombola que atravessou o Atlântico, vindo para cá, da continental e imensa África, em barcos lusitanos de comerciantes escravocratas, empestados de escorbuto, sem que os negros e negras tivessem, durante a longa viagem, as receitas dos remédios milagrosos de Orixás: azedeira, barbatimão, fumaria, cocleária, limão e pariparoba. Porém, tal mal físico foi bem menor do que a histórica tragédia da escravidão, da oko-erú, da àjagá, que deixaram consequências e marcas indeléveis...
Marcando na História, o Governo do Estado já prepara, através da Secretaria de Estado da Cultura, esquentando os tambores para o ano de 2021, o II Festival da Cultura Cigana, em Sousa; e, abrindo, com este anúncio, o advento das comemorações da Consciência Negra, com o eventual II Festival da Cultura Quilombola, na Serra do Quilombo do Talhado, situado no Município de Santa Luzia, onde a afrodescendência foi registrada pelo filme Aruanda , de Linduarte Noronha. Sim, lá soará a batida da alfaia, quando e onde haverá oficinas, ensinando a crianças e jovens quilombolas como se fazem instrumentos daquela cultura: alfaia, reco-reco, pífano, berimbau e agogô. A alfaia é um instrumento no formato de um grande bombo, geralmente com dois couros de bode, cuja singularidade é serem seus círculos, tendo no meio uma armação de madeira, amarrados por cordas de agave ou por grossos barbantes. A alfaia é significativa, porque é fabricada de coisas que se encontram na comunidade quilombola, sem que se precise descer à cidade... Por isso, ao soar alto, a batida da alfaia ritmará coisas tiradas dali, com danças e cantos dos 42 quilombos reconhecidos, existentes na Paraíba.
A alfaia inspira essa desejada concentração ao espírito, que chega a se envolver com os movimentos do corpo, arremessando-o ao transcendental, na prática do seu caráter religioso. Também é um toque profano, mundano, enquanto marca as passadas de homens e mulheres, por exemplo, na dança coreográfica da umbigada: aproximando corpos, inicialmente com vênias pela inclinação da cabeça ou com a aproximação dos umbigos, definida pela pisada do pé; é, sobretudo, uma dança convidativa ao sensualismo, “no dançar às umbigadas, o belo lundum chorado”. Além da alfaia, destaque-se o toque penetrante do agogô, vindo até aqui dos povos de Lunda. Essas manifestações compõem, de modo popular e soberbo, nossa afrodescendência, sobre o que também desperta diferentes visões e renovadas impressões pelos que reconhecem o tamanho dessa presença africana, trazida pelas negras e pelos negros à nossa cultura, histórica e atual, contudo, sempre em busca da sua identidade nacional. Se houvesse separação, pouco restaria da cultura brasileira, propriamente dita. O bem-vindo II Festival da Cultura Quilombola, nesse contexto, é um dos maiores acertos da nossa política pública. Por isso, continuaremos a ouvir o toque da alfaia, já iniciado pelo aquecimento dos tambores do Talhado.
Damião Ramos Cavalcanti
Enviado por Damião Ramos Cavalcanti em 26/09/2020