Damião Ramos Cavalcanti

Enquanto poeta morrer, a poesia haverá de viver

Textos


                                   Simplesmente ela, a manga

       Em determinados períodos, determinadas palavras são mais faladas, ditas mais constantemente, sobretudo as substantivas. Algumas até enjoam, o que não é o caso da manga, tão dita, vista, admirada, colhida e comida, especialmente a mais nova rosari, e a espada, a mais antiga. Há a safra, quando vulgarmente chamam “tempo de manga”. Lamentavelmente tenho ouvido: “acabou-se o tempo de manga”, ela que é tão rica em antioxidantes, que contém fibras solúveis e alimenta muitos animais, sobretudo aves e belíssimos pássaros. Geralmente o pássaro que bica manga é poeticamente colorido.
       Há quem goste de manga para plantá-las, vendê-las e, motivado pelo lucro, encha os supermercados de mangas, mesmo fora do tempo. Meu pai Inácio as classificava como “manga amadurecida no carbureto”. Ele desconfiava desse artifício, “não, não era saborosa”... Hoje, pintam miséria com as plantas, cortando-as , queimando-as, mas também submetendo-as ao trato como a medicina cuida dos humanos, com curativos, transplantes e enxertos. Assim trouxe, da antiga casa para a nova, uma mangueira de três metros. Roosewelt Vita se gabava por ter, no oitão da sua casa, uma mangueira, cujos galhos esquerdos davam manga rosa, e os da direita, manga espada. Neco Dias, amigo comum, que adorava retrucar essas coisas com amigáveis competições, saía-se com esta: “Lá em casa tenho um pé de manga que dá, ao mesmo tempo, cinco tipos de manga diferentes, uma mais doce do que a outra”. E assim, debaixo da mangueira, servindo-se de um churrasco, jogava-se conversa fora, também sobre frutas, frutos, pseudofrutos e laudáveis mentiras.
       As mangueiras começavam lá em frente da Igreja de Lourdes, de Padre José Trigueiro do Vale; estendiam-se pela Avenida João Machado, até o Orfanato Dom Ulrico, mas, antes, dobravam à esquerda, pela Maximiano Figueiredo, espichando-se até mirar o bonito prédio do Hospital Santa Isabel, variando, aqui e acolá, com jambeiros que teciam, com vermelhos estames, lindos tapetes no chão. Essas mangas, ainda colhidas pela pobreza, fazem bem à visão, ao intestino e ao coração. Quando se fala de manga, a palavra é entendida, conforme a circunstância, o que ocorre com todos os termos equívocos. Aprendi essa equivocidade, estudando Lógica e, na semântica, a polissemia. Se com fósforo na mão para acender o candeeiro, então, a manga é de vidro; se levantando a camisa para tomar vacina, ela é de tecido; ou, se estou à mesa, para algum lanche ou sobremesa, a manga será esse delicioso assunto que lhe fala. São circunstâncias que definem um mesmo termo: manga.
       Esses termos polissêmicos acontecem também com a mãe “mangueira”: mangueira como curral; mangueira planta e mangueira para aguar a mangueira. Só assim se explica que o leitor, ao chupar a manga, ao mesmo tempo, pode quebrar a manga e sujar a manga... Seria um quebra-cabeça para os precisos na linguagem como o alemão. Os termos equívocos são, na linguagem, um só caminho para vários destinos, com diversas designações; um só som, uma só escrita que define diversos conjuntos ou diferentes coisas. O que é a gostosa manga, está agora sumindo, mas voltará, igual às quatro estações, como varia, com muita musicalidade, Vivaldi. A manga veio de onde, de Bangladesh, da Índia, das Filipinas ou do Paquistão? Não sei. Só sei que veio da minha infância, e ela auxilia a memória. Originou-se, para mim, em Pilar, no sítio, atrás da minha casa.
Damião Ramos Cavalcanti
Enviado por Damião Ramos Cavalcanti em 28/01/2021
Alterado em 28/01/2021


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