A Festa das Neves de Flávio Tavares
Pairando, no largo da Rua General Osório, como se fosse a aguda visão de uma águia, Flávio viu tudo, lá de cima. Até mesmo os bozós brancos de osso, rolando, no feltro vermelho e verde, cheio de quadrados e números para sortearem o azar ou a sorte. Desceu, na hora em que quis, para sua memória enfrentar o medo que nutria de Monga, mulher que se transformava em espantoso monstro, perdendo aos poucos seus belos e sensuais lábios, em troca de uma enorme boca de gorila de grandes dentes e, nas mãos peludas, longas unhas afiadas. Quem não tinha medo de Monga, mesmo pagando os derradeiros cruzeiros para sofrê-lo? Daí, pode vir a filosofia de que a curiosidade, em certos momentos, vence qualquer medo ou pavor.
Voltou de volta o pintor, novamente de cima, entre o antigo Mosteiro de São Bento e a imponente Catedral, avizinhado pela entrada da Conselheiro Henrique, onde se enfileiravam várias barracas de cocada preta e de maçã caramelada e, bem em frente à casa 36, da restauradora Ubaldina Gomes, o cachorro quente de Nêga. Da tela, com dois metros de distância, senti o cheiro desse tempero, que na realidade se espalhava até as imediações do Casarão dos Azulejos e da devotada Igreja do Carmo, já vizinha ao Palácio do Bispo.
Águia, à semelhança das corujas, gosta das torres de igreja, para ver de cima, silenciosa, sem o barulho das asas. Mesmo assim, do alto e de longe, pelo cheiro, sentia que Nêga tinha acendido o carvão, também em outras tendas e pavilhão, percebendo a fumaça dos espetinhos e das linguiças, como nada faltasse a quem quisesse comer. As lembranças de Flávio são abrangentes, pela arte dos seus pincéis, oferecendo um eloquente colorido de gente e de coisas, viva e mortas. Essa memória flaviana não é única, encontra-se também nas quermesses interioranas, quando se misturavam o sagrado e o profano, como se fosse um amplo “terreiro”; a fé e alegria; a reza e os cantos; o som da serafina e o do zabumba, sanfona e pandeiro; o das bandas filarmônicas, executando também tradicionais dobrados; e a difusora em alto-falante, transmitindo os discos 78, com canções românticas, depois das pagas, com “declarações de amor”, sob o sigilo do anúncio: “de alguém para alguém, de quem muito te ama”. Enfim, os dois sabiam... E lá vinham Miltinho, Nelson Gonçalves, Emilinha Borba, Ângela Maria e, posteriormente, já dos discos de 33 ou 45 rotações, Cely Campello ou Roberto Carlos, isso até, em todos os sentidos, a festa terminar...
Vejo também nessa tela a águia passar pelo carrossel e ir aos pés da roda gigante, de onde espiavam os “lances” das lindas garotas, que se divertiam ao perceber que estavam sendo admiradas. Havia, no ar, a intenção de flirt e de outros desejos, que resultariam, talvez, em alianças de compromisso ou, por fortuna, de felizes casamentos. As moças traziam, do interior, até pouco tempo usado em Itabaiana, o costume de andarem de braços dados. Era uma proteção, inclusive do preconceito contra a mulher que andasse sozinha. Essa caminhada, no interior, acontecia, também, fora dos dias santos, nas noitadas de feriados, sábados e domingos. Ao som do Berra Boi (Cassicobra, Chico Correa e Lucas Dan), a Festa das Neves é criativa e excelente inspiração, rica memória da cidade de João Pessoa, que sempre narrará a outras gerações nossas conquistas e valores culturais. Atualmente, enquanto acontecem tristezas com doenças coletivas, como a Covid, o artista Flávio nos presenteia esse quadro, sobre uma das maiores alegrias da cidade: A Festa das Neves.
Damião Ramos Cavalcanti
Enviado por Damião Ramos Cavalcanti em 05/08/2021
Alterado em 05/08/2021