Na matraca, a tristeza da morte
Nesta Sexta-feira da liturgia do Tríduo Pascoal, a Igreja celebra, com a morte, o fim da paixão de Cristo. Há, no bater da matraca, tristeza de morte. Quando era adolescente em Itabaiana, arrodeava a Matriz da cidade, tocando a matraca, pedaço de madeira, já envelhecida por tantas semanas santas idas, com argola dos dois lados, que fazia um barulho triste e estranho, em substituição às campas e aos sinos, que, parados, silenciavam, aguardando a alegria da ressurreição. A Igreja é mestra nisso, no rito ou em qualquer coisa, em tudo coloca um significado, das cores dos paramentos aos símbolos de ouro ou da pobreza; também na vida, também na morte. Até naquela matraca, em cujas tabuinhas e peças de ferro, produzia-se um som não convencional e lutuoso, próprio do tempo, em que os santos estavam cobertos de roxo. Fora disso, nunca se ouviu, por aqui, o anúncio da morte de alguém pelo esquisito barulho da matraca.
Quanto à morte, ela sempre existiu, desde que existiu a vida. No Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, Riobaldo, na sua originalidade e na linguagem que lhe é própria, diz uma coisa de filosofia profunda: “Viver é perigoso”. De certo modo, sim, sem relevar a linda imagem literária de Guimarães. Já que os perigos se despertam, enquanto temos sensibilidade e mente em vida. Porém, os maiores perigos são aqueles que nos ameaçam de morte. Esta, sim, é mais perigosa e temida do que a vida. O próprio Jesus Cristo, antes de padecer, apelou ao Pai: “Se for possível, afasta de mim esse cálice”. E também encarnando essa angústia humana, pregado na cruz, na hora nona, já prestes a morrer, temendo a morte, gritou : “Eli, Eli, lamá sabachtháni” (Deus meu, meu Deus, por que me desamparaste - Mt 27, 46). Assim, entendo que precisamos de mais coragem para morrer do que para viver...
Em todos os sentidos, lutamos para continuar vivendo, ou seja, para não morrer. O temor de morrer angustia, e quem enfrenta perigos, com possibilidade de morrer, carece de muita coragem. O comedimento e a hesitação não oportunizam atos de heroísmo... Sem sair do seguro e confortável reino, em Ítaca, e dos carinhos de Penélope, Ulisses (Odisseu) não haveria vencido tormentas, monstros, tentações das belíssimas sereias, nos revoltos mares do Egeu e do Mediterrâneo, e se tornado herói na Guerra de Troia. Para encontrar tamanha fama, perdeu-se durante vinte anos, nos descaminhos da odisseia.
Nesse mesmo mundo, o filósofo Sócrates, então o homem honesto e pai da ética, em Atenas, alegando-se ser ele contra os deuses e corruptor da juventude, foi condenado à morte, e para isso beber um cálice envenenado de cicuta. Como lhe propuseram os amigos discípulos, as janelas da prisão abertas, poderia ele ter fugido. Mas Sócrates, sempre em diálogo com o carcereiro, decidiu enfrentar a morte para dar exemplo aos injustos de que a Lei deve ser cumprida; e aos justos, de que sua condenação, por tão falsa acusação contra o inocente, estava sendo injusta.
Sem saber o que fazíamos, no entardecer da Sexta-feira Santa, sob a estranheza e a curiosidade dos transeuntes, nós jovens pré-seminaristas ou membros da Cruzada Infantil disputávamos a vez de quem tocaria aquele medieval instrumento, em substituição ao campanário ou à torre dos sinos, calados desde a celebração da Ceia, na Quinta-feira Santa. O sábado sempre foi o dia vazio de qualquer sonoridade, como o silêncio da morte, à espera do Domingo da Ressurreição, quando se guardaria, ao ano seguinte, a matraca para se cantarem os júbilos da Páscoa, na alegria poética do Exultet, harmonioso cantochão. A matraca, pela sua tristeza, jamais acompanharia os momentos jubilosos da Semana Santa.