O lobisomem e outras metamorfoses
Comecei a criar um imaginário sobre a significância de metamorfose, estudando, em grego, sua composição que simboliza a transformação de um ser em outro, mudança que acontece em alguns seres vivos, transformando-os em outros seres vivos ou, punitivamente, em coisas, mais comumente em plantas ou animais. Até se aplica essa mudança em indivíduos que eram bons e tornaram-se maus, capazes de tudo, da verdade à falsidade, derivando à mentira; da bondade à maldade, e da vida à morte. Difícil é encontrar metamorfose entre os seres não viventes, como as pedras. Há esperanças de que ocorra o inverso: o mau retornar ao bem, nem que seja por intervenção sobrenatural. Enfim, metamorfosear-se provém de um movimento ontológico, geralmente em estrutura de viventes.
Durante a infância, fui amedrontado pela pavorosa existência do lobisomem. Antes de dormir, ouviam-se detalhes da fera metamorfoseada, saída de um homem alto, magro, para um todo corpo cabeludo, com garras e cabeça de lobo, à procura de carne com sangue. Vagava entre as árvores da mata, em Pilar. Teria sido visto descer até à margem direita do Rio Paraíba, onde se mostrava, ao beber água, visível como bicho, nas noites de Lua cheia. Tal narração popular, transmitida pela oralidade, corria de boca em boca, das contadoras de estórias, não letradas, desconhecedoras do que fosse propriamente metamorfose ou sua etimologia. Por isso mesmo, tida como cultura mítica vulgar, romanceada pelo conterrâneo José Lins do Rego, em Menino de Engenho e Fogo Morto, na Mata do Rolo de Pilar.
Já tratando-se da erudita, em A Metamorfose (1912), de Franz Kafka, a qual consegui ler, já sem temor, na juventude, contudo imaginei a angústia do jovem rapaz, cheio de ideais, da noite para o dia, virar inseto ou besouro, mesmo que fosse aceito e tratado pela família, com que morava. Ao sofrer, persistia, naquele enorme besouro, tipo marzagão, a fixa pretensão de trabalhar, fora de casa, para sustentar sua pobre família. Mas, como ser arrimo do pai, da mãe e da irmã, sem passar da porta do seu quarto escuro? Esse intuito de Gregor continuava, enquanto caixeiro-viajante, mas, depois do medo de perder o emprego, ele também temia exibir à sociedade suas novas formas. Iludia-se com o trato da irmã, que passou a odiá-lo, depois do susto, da repugnância que causou aos inquilinos da sua casa, o que ajudava as parcas finanças do pai. Sem voltar às origens, Gregor Samsa, ainda ascoroso inseto, acabou falecendo e esquecido pela família, que sem ele sobreviveu...
A literatura sobre essas transformações abunda nos livros, dos quais releve-se a magnum opus, As Metamorfoses, do latino Publius Ovidius Naso (43 a.C – 18 d.C), à vista na minha biblioteca, editada pela UFSC, que reuniu ótimos latinistas do país, para traduzirem Ovidio, do latim ao português, numa perfeita versão bilíngue: à esquerda, o latim, e à direita, a nossa língua. Desse belíssimo trabalho, para nosso orgulho, faz parte o genial docente da UFPB e nosso confrade amigo, na Academia Paraibana de Letras, Milton Marques Júnior, que me presenteou a comentada edição, onde constam os episódios de: Niso e Cila, O Labirinto, A Coroa de Ariadne, Dédalo e Ícaro. Perdix, O Javali de Caledônia. Meleagro, Teseu em casa de Aqueloo. Perimele, e Erisícton. A Fome.
Exímia tradução do professor Milton, que também sabe de tudo sobre metamorfose. Li muito sobre esse inesgotável assunto, sobretudo traduzindo textos em latim, para mim mesmo, da Antiguidade Clássica, e concluí que, sobre as metamorfoses, Ovídio é incomparável. Ele descrevendo esse mundo, quanto mais agradável sua leitura, mais a metamorfose é acreditável...
Enviado por Damião Ramos Cavalcanti em 26/08/2023
Alterado em 26/08/2023