Damião Ramos Cavalcanti

Enquanto poeta morrer, a poesia haverá de viver

Textos


        Come-se  ou bebe-se como um cavalo?
 

           Nenhum animal se alimenta além dos limites, nem comendo, nem bebendo. É injusta a comparação, quando muito se come, “come como um cavalo”. Injustiça ao cavalo, que, se diante do mais farto cocho, para de comer, quando já se sente alimentado, obedecendo sua própria natureza. Isso se observa, da menor formiga à maior baleia. Sim, os animais comem como um cavalo, “educados” pelo instinto, nenhum é pantagruélico. Mesmo o cão mais feroz, se faminto, avança com ímpeto sobre um grande pedaço de carne, mas, satisfeita a fome, abandona mansamente o osso ainda cheio de carne. Equivocamo-nos, somente o homem e a mulher comem além dos limites. Talvez me censurem pela ousadia da comparação. Mas, verdade seja dita. Escrevem que, na Antiga Roma, comia-se e bebia-se ,demasiadamente, durante as bacanais e orgias, sob inspiração de Baco... Não suportando mais ingerir uma azeitona, a gula propunha o vômito como liberação de espaço a um novo apetite e, com o estômago vazio, reiniciavam-se as gulodices.
          Os rodízios existem como atração aos que comem fora do limite; quem não conhece gente que dispensa uma refeição para mais do que repetir o enchimento do prato, nos restaurantes que oferecem à vontade  do freguês? Em certas ocasiões, a esperteza do restaurante desiste de oferecer, seja carne ou pizza. Os chamados rodízios são palcos da ganância ou da gula, como também o são os intermináveis churrascos. Aprendi em países civilizados que devemos nos contentar com, no máximo, 100 gramas de carne por refeição, o que é incomparável aos 1 000 gramas, costumeiramente, ingeridos num churrasco, pelos insistentes chamados ao garçon, vindo e indo com o espeto ao calor da brasa. Quem não conhece, nos nossos arredores, alguns que se caracterizam pela vulgar expressão: “Ele é bom de garfo”, ou glutão que não para de comer. São os que praticam radicalmente uma espécie de epicurismo hedonista, deixando até de lado, o prazer sexual. Tais quais seguidores do pantagruelismo, que supervalorizam os empunhadores de garfo.
          A comedeira, como desprezível pecado da gula, compreende-se na comédia de 1973, que se intitula A Comilança  (La grande bouffe), dirigido por Marco Ferreri, que reuniu extraordinário elenco, constituído pelos famosos Marcelo Mastroianni, Ugo Tognazzi, Michel Picolli e Philipe Noiret. Eles se trancam numa mansão exclusivamente para comer. De tão visivelmente dramático em matéria de prazer, esse filme foi proibido em alguns países, mas quando visto, tornou-se elogiado pelos críticos e cinéfilos. Seria uma explicação do que seja o propósito do pantagruelismo, que se define na obra Pantagruel , de François Rabelais. Conclui-se, nessa película, que o excesso de comida, dada a proporção, leva à morte, dando-nos uma definitiva lição: Come-se para viver e não se vive para comer... Distinga-se  se comer muito, além dos limites, configura-se como uma intensa vontade ou como um impetuoso desejo.            Assunto próprio do humano, contudo, distingo, não é uma “cavalice”. Minha complacência ao cavalo; a gulodice toca a nós, os humanos, a que  talvez se contemple chance de autocorreção, sem ser propriamente dieta, mas apenas autoestima como pessoa humana.
         Todavia, mesmo parecendo sinônimos, mas distintos, o que influenciaria mais ao glutão para resistir à tentação interminável de comer, a vontade ou o desejo? Pelo cheiro das palavras, a vontade. É a força de vontade que vence tal sacrifício; supera as dificuldades durante a renúncia; e submete-nos ao senso do dever. Enquanto o desejo se relaciona mais com a ambição ou com a pretensa necessidade que se quer satisfazer. O desejo foge, pela imaginação, à busca de maior conforto. Mas, com liberdade, vontade é a capacidade de praticar ou deixar de praticar a ação querente, mesmo que prazerosamente se deseje...

 

Damião Ramos Cavalcanti
Enviado por Damião Ramos Cavalcanti em 15/02/2024


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