Damião Ramos Cavalcanti

Enquanto poeta morrer, a poesia haverá de viver

Textos


             Compreende-se o mistério no silêncio

          O essencial não é uma hipótese que se demonstra, na lógica dos argumentos e silogismos. Tampouco compreende-se o mistério, no mundo barulhento em que vivemos, interrompido apenas às vezes pelos celulares da vida. Hoje, a maior conquista é escapar, fugindo ou não, das coisas supérfluas que abafam a voz do silêncio, quando mais alto falam a grandeza e a inteligência humanas. Nesse contexto, ainda é possível compreender o problema do mistério.
          Acredito nas possibilidades humanas. Nossos problemas existem, porque somos capazes de resolvê-los, tal evoluiu a faculdade da nossa inteligência, à qual o maior desafio é o mistério, de uma Voz que nos intima e indaga: Quem és e onde estás, a ouvir o meu Verbum?  Sob essa indagação se debruçaram filósofos, teólogos e tantos pensadores, tentando intuir e desvendar o segredo do Absoluto, mesmo em tempos em que havia muito mais silêncio. Imagino quantos maços de vela, per silentium noctis, queimou Tomás de Aquino a escrever a Suma Teológica.
          É para a compreensão desse mistério que os seres pensantes, mais distantes do bruto homo faber, conseguiram abstrair a manifestação de Deus, acima das ruínas da humanidade. Sim, o Deus dos filósofos não contradiz o revelado, mas foi diferentemente o que se sobressai do que reina nesse barulheiro mundo. Agitação das doenças incuráveis; das vivências do ódio; das guerras execráveis, sobretudo matando os que desejam a paz. Deus não está nesse barulho, que usa seu santo nome em vão; tudo que é desamor abafa a sua voz.
          O silêncio de cada um se traduz por o silêncio em cada um, que é uma circunstância introspectiva, de clima interior, como se fosse uma presença ausente, na ausência da presença. É nesse espaço onde se encontra Deus, exceção dada, naqueles que nos são próximos... Para se entrar em contato com Ele, só é mais fácil no recolhimento, na concentração, na meditação, longe do ruído das coisas, especialmente das coisas supérfluas, como o dinheiro ou o ouro que afastam a sua voz. Ela, como devem sentir os poetas, sendo uma experiência que só se realiza no silêncio de cada um, diz sem abrir a boca, no clima interior e na leveza do espírito.
          Os mais sensatos não estranham que, no mundo atual em que vivemos, os ensurdecidos pelas frivolidades e ganâncias não concebem Aquele que se apresenta sem palavras, quando a voz do silêncio é propícia, é assim que se deixa passar a sua fala. Bem-aventurados são aqueles que procuram e fazem esse silêncio, que nos deixa sentir a misteriosa, dialeticamente, ausência presente na voz de Deus. Em 1963, durante a preleção de latim, o Professor René corria da sala de aula à Igreja São Francisco, apavorado pela sirene da polícia, que apitava na Rua Vigário Salem. Também se fosse a da ambulância, traumatizado que era pelo então aviso dos aviões e dos bombardeios da II Guerra Mundial, na sua cidade da Europa. Isso fazia retornar angustiante trauma, adquirido na infância, vivido mesmo aos seus 40 anos.
          Mal-aventurados são aqueles que, atualmente, bombardeiam hospitais, casas, ruas e escolas, até sem algum aviso, explodindo estrondos e bombas, separando pernas e braços de corpos infantis, matando por nada anjos de Deus, vítimas políticas e de revoltante silêncio, que, ao contrário do divino, é a voz de Mefistófeles. Pois, diante de repugnante quebra do silêncio, o silêncio da omissão é diabólico, tanto como a guerra é satânica e arrenegada. A guerra é quando o silêncio finda; a paz, quando o silêncio recomeça... 


 

Damião Ramos Cavalcanti
Enviado por Damião Ramos Cavalcanti em 08/03/2024


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