Se os espelhos falassem...
Nestes dias, haja espelhos, nos chapéus de cangaceiros, nas saias das matutas, nas bolsas e bolsos dos vaidosos, e nos camarins dos cantadores e sanfoneiros de forró. No espelho há suas relativas importâncias, em qualquer época, em qualquer tempo, das choupanas às casas nobres. Faz-me curiosidade esquecer, de repente, a mais recente imagem espelhada; ou como é difícil lembrar o que foi visto horas atrás! Grava-se mais, quando, no espelho, verificou-se alguma estranheza, como mancha, espinha, sinal ou barba malfeita. O espelho faz esquecer o que se deixa passar.
Antropólogos historiam que, em tempos remotos, os invasores enganavam os nativos com espelhos, trocando-os por madeira,, prata, ouro ou pedras preciosas... O espelho tem seus feitiços e provoca mistérios. Se voltasse a ser criança, perguntar-me-ia, se estaria eu dentro do espelho... Nesse contexto, Jacques Lacan teoriza que o espelho muito contribui para o desenvolvimento e a construção da identidade infantil. Penso acontecer um confronto entre a criança e o seu próprio reflexo, ludicamente testado pelos propositais movimentos dos seus braços, das suas mãos e da sua cabeça, e da saída e do imediato retorno ao espelho, como se entrasse, saísse e reentrasse nele... Também a criança descobre existir um outro além de si. Como se constata, o espelho não é apenas um pedaço de vidro, com uma camada de metal, que reflete coisas, pessoas e, quem sabe, até fatos.
Fenômeno que admirei, sem vidro, nos espelhos d’água dos jardins de Alhambra, em Granada, construídos pela arquitetura islâmica, para refletir a beleza dos palácios e da natureza, naquela pequena cidade espanhola. Li o espelho, no mito grego, imortalizado em Metamorfoses, de Ovídio, traduzido do latim pelo amigo Milton Marques, que trata do jovem que se acha possuidor de uma beleza única, apaixonando-se pela própria imagem, num espelho d’água, assim sofrendo ao extremo por não ter tal paixão correspondida. O espelho do Mito influi na longa história das artes, como Narciso, pintado por Caravaggio, o que, posterior ao artista italiano, inspirou Freud na sua reflexão profunda sobre o narcisismo.
O narcisista, como se estivesse sempre diante de um espelho, vive se autocontemplando; alimenta-se dessa doentia vaidade, nutrindo-se, como se acontecesse um fenômeno de autoabsorção, mas sempre faminto dessa autoadmiração. Isso se demonstra notável quanto ao sexo, à luxúria e ao poder, demonstrações na nossa ambiência e convivência... O espelho foi feito para outras finalidades. Ele é fiel? La Fontaine, na fábula, O homem e a sua imagem, acusou os espelhos de serem falsos, como silenciassem sobre o que antes nos mostraram... Porém, o espelho justifica sua importância, a cada vez que reflete; revela sua afirmação, como nele houvesse uma autoconfiança. Enfim, o espelho, em nada, envolve-se com alguém, sobretudo com o narcisista, que reserva amor em si mesmo e a si mesmo.
O espelho não nega companheirismo a ninguém. Até vulgarizou-se, levado a maior desuso, substituído pelo celular que não reflete, mas, dá imagem, fala, filma e fotografa. Se alguém recorre ao espelho, ele ajuda a consciência de quem o procura. E com intimidade e confiança, ninguém espera que o espelho esconda as más aparências; ao contrário, que ele ajude a amenizá-las. Não quebre o espelho, como a “rainha má” em Branca de Neve; use-o e não seja usado por ele. No Sermão do Demônio Mudo, adverte Padre Vieira que o espelho adula, encarece, atrai, afeiçoa, enfeitiça, engana, mente e desmente, mudo, nega o que é, fingindo o que agrada...