Damião Ramos Cavalcanti

Enquanto poeta morrer, a poesia haverá de viver

Textos


         
            Coragem de se sepultar sob a neve

          Se os flocos descessem das nuvens e não passassem por uma temperatura abaixo de zero, eles se derreteriam em gotas de chuva e não se tornariam neve, esbranquiçando poeticamente os galhos das árvores, os telhados das casas e o que sobra de chão, principalmente nos vales e nas montanhas. Menino nordestino, só vim saber o que era neve, quando a vi num filme preto e branco, perguntando-me o que era aquilo. Já quase adulto, viajei muito para pegar naquilo que eu imaginava. Assim, já estudante de Filosofia, nunca recusei convite para ir às estações de neve, nos arredores de Roma. Vibrava já a me equilibrar em pé em cima de um esqui, variadamente em Monte Livata, Cappadocia, Ovindoli, Campo Staffi, Campo Felice e, a mais distante, Via Lattea.

          Tudo que cai do céu é muito lindo e admirável, embora admire e não deseje raios, meteoros, meteoritos, ou o que se falava, nas nossas infâncias: algum corisco, que chegou até apelidar valente e cruel cangaceiro. Também quando neva em demasia, há transtornos nas nossas choupanas e moradias, nos nossos caminhos. Já enfrentei estradas viscerais e estreitas, através de uma floresta de pinheiros, com paredes de neve com quatro a cinco metros de altura. Caso desabassem, trancariam o carro, com minhas filhas pequenas e esposa, na noite escura, impedindo de prosseguirmos a viagem. Tive medo, durante quatro horas, a caminho de Chamonix, até que encontrei uma casa perdida, de pessoas que jogavam baralho, à luz de candeeiro...
          Foi por lá que presenciei um companheiro, do nosso grupo de esqui, afoito, distanciar-se e perder-se na imensidão branca da montanha. Com certeza, quanto mais nos procurava, mais se afastava de todos nós. A neve, a miragem do deserto, e as águas do oceano nos desorientam para o caminho ou o sentido do retorno. Que nos digam os pescadores das canções de Dorival Caymmi, ou O Velho e o Mar, em Hemingway. Assim, Pierre, não encontrado à noite pelo helicóptero, foi achado, no dia seguinte, morto e congelado. Então, a estação de esqui nos reuniu para ditar regras e instruções, em casos semelhantes: “Quando isso ocorrer, cavem um buraco e enterrem-se sob a neve para preservar a temperatura do corpo”. Seria suficiente Pierre ter tido coragem de se sepultar sob a neve.
          Em Terra dos Homens, Saint-Exupéry nos conta como, ao contrário de Pierre, seu amigo Guillaumet lutou contra a morte, enfrentando uma tempestade de neve, nas montanhas dos Andes. Viu-se perdido e sozinho como um náufrago no meio do oceano, sem bússola, sem referências, e somente à noite, via as estrelas do céu; só sentia a respiração e a neve que lhe caía no rosto. Medo e angústia esfriavam mais ainda as extremidades do seu corpo. Caminhando três dias, experimentou o que nenhum animal teria conseguido: as razões de viver, que era capaz de amar e rever suas amizades. Trôpego, passo a passo, balbuciava: “Se minha mulher pensa que estou vivo, ela acredita que estou caminhando...” A lembrança dos filhos o sustentava de pé, acordado, ainda com energia. Confessou Guillaumet que foi o amor que o salvou.
          Em qualquer difícil circunstância, somente o amor sugere possibilidades de superação

Damião Ramos Cavalcanti
Enviado por Damião Ramos Cavalcanti em 05/07/2024
Alterado em 06/07/2024


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