Damião Ramos Cavalcanti

Enquanto poeta morrer, a poesia haverá de viver

Textos


         
          Cronofagia, pasto dos cronófagos 
          

          Não existiu melhor domingo de viagem, do que o passar o tempo entre as letras, palavras e sentenças, no Museu da Língua Portuguesa, na Estação da Luz, em São Paulo. E que agradável surpresa ao escutar, dentre tantas, a genialidade do poeta conterrâneo Augusto dos Anjos e também do nosso estimado Oliveira de Panelas, registrando, naquele Museu, os repentes da admirável arte nordestina. Lá, ensina-se e aprende-se português do modo mais prazeroso possível, como recomenda a teoria da corporeidade na pedagogia vivencial. Aprendemos como surgiu a linguagem; de onde se originou o nosso idioma; por quais terras navegou nossa língua; a compreensão, extensão e equivocidade do termo ou polisemia; as expressões populares na sabedoria do bom senso; a estética na poesia, nos romances e crônicas, e como fala conceitualmente nosso povo. Enfim, ensinam-nos a etimologia, a significação da coisa na palavra e o neologismo, do erudito ao vulgar. Bom seria que, nas maiores cidades brasileiras, houvesse semelhantes museus ao conhecimento do nosso idioma pátrio. 
           Senti, com meus modestos conhecimentos de grego e de latim, que poderia também criar alguma palavra, com ajuda da metáfora. Foi quando vi um indivíduo, aparentemente desocupado, sentado no corredor, do momento em que entrei à hora em que saí. Lançava um vago olhar pela janela, interrompido apenas pelas pessoas que passavam, umas chegando, outras saindo. Absorto, não falava, nem lia, tampouco reagia aos avisos sonoros da programação. Parecia não demonstrar qualquer interesse por aquela riqueza de coisas e ideias. Deveria ter sido levado por algum filho ao museu...
          De repente, veio-me o sinal escrito e falado para conceituá-lo: cronófago, explicaria eu: aquele que revela possuir cronofagia. Se, um dia, esse neologismo vier a fazer parte do nosso dicionário, assim deverá constar: Cronofagia ­ [Do grego /kronophagía; /v./ /kron/(o)-, /-/fag(o)/ e ­/ia/.]. Substantivo feminino. 1. Estado, condição ou ato de cronófago. 2. Antrop. Prática regular e institucionalizada de consumir o tempo ou estado de ocioso, de quem gasta o tempo inutilmente; [Sin. ger.: inatividade.] E o desocupado se definiria como: Cronófago ­ Do Gr. /Cronóphagos /pelo lat. /Cronophagus/.] Adjetivo. Substantivo masculino. 1. Qualidade daquele que deixa o tempo passar. 2. Restr. Diz-se de alguém que gasta ou consome o tempo.
          Cronófago, em grego, significa comedor de tempo; por aqui entre nós: “papa-tempo”. Geralmente, encontram-se em repartições públicas; se em empresas particulares, com certeza, elas pertencem ao pai. Existem ainda nos jardins, bares, praias, praças, cafés e em lugares apropriados para longos papos. Podem também ficar em casa, na rede do alpendre, que já tem o formato do seu corpo e, próximo ao punho, a marca de sua cabeça. Os cronófagos têm uma vida programada: acordam tarde e vão tomar o café da manhã; ficam esperando o almoço; almoçam e, em seguida, aguardam o jantar; jantam e cansam-se, vendo televisão ou cochilando.  Dormem e, noutro dia, recomeçam tudo de novo. Muitos já adquiriram o hábito de viver de boca aberta, como o papa-vento. Pois, é pela boca que entra, sem fastio, o tempo, sempre consumido.
          O cronófago nunca perde tempo, porque é perdendo que ele ganha... Sua religião é a de sempre esperar pela providência divina. Manifesta pessimismo para tudo aquilo que lhe exige algum esforço. Se qualquer coisa depender de trabalho, que outros o façam. O provérbio diz que “tempo e maré não esperam por ninguém”. O cronófago inverte o adágio, pois é ele que espera pacientemente pelo tempo, para devorá-lo.

 

Damião Ramos Cavalcanti
Enviado por Damião Ramos Cavalcanti em 29/09/2024
Alterado em 29/09/2024


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