Damião Ramos Cavalcanti

Enquanto poeta morrer, a poesia haverá de viver

Textos


                  Finados e gestos da humanidade
 

          O Dia de Finados, de 2 de novembro de 2024, passou e não volta mais. Mas, os finados não passaram, tampouco passarão. Quem morre se enclausura numa morada quanto ao tempo indefinido, ou seja, não volta a viver porque ninguém morre duas vezes. É como se estivesse num quarto escuro, sem portas, sem janelas, sem algum buraco no piso ou no teto. Contudo, tais paredes são transponíveis pelos espíritos, ultrapassam as mais grossas, entram e saem das celas mais fechadas, sem precisarem de habeas corpus; para as almas, tudo é igual, tanto faz construírem alcovas ou corredores.
          Tampouco, dentro desse quarto escuro, de imagem metafórica sartreana, nada se corrige, mesmo o menor defeito ou qualquer crime cometido em vida, as autocorreções só acontecem enquanto vivemos. Não quero desestimular quem já morreu, nem tirar-lhe a fé, ele se desprendeu, sem dieta, do peso do corpo, e ficou mais leve do que uma pluma, invisível ou visível quando quer aparecer, tornando-se para uns assombração. A mim, não seria, desejo me encontrar com as almas dos entes queridos. Soltos, fora do quarto escuro, quanto à ação, especialmente para se corrigirem das coisas do passado, continuam no quarto escuro, sem tal liberdade, que só é possível aos vivos que são, nesse sentido, perdulários do tempo.
          O Dia de Finados é uma comemoração geral, sem muita alegria como se festeja o Dia de Todos os Santos. Contudo, cada santo tem o seu dia; 27 de setembro é o de São Cosme e Damião, quando se distribuem bombons e pirulitos às crianças. Já os falecidos são normalmente lembrados na data em que morreram, com missas e orações, nos sétimo, trigésimo e centésimo dia do aniversário de morte. Depois do centésimo, a comemoração sofre esquecimentos, a não ser se o lembrado é algum ilustre, ou tenha assumido atitudes pelo Bem Comum, enquanto viveu, tornando-se  santo ou herói.
          Algumas culturas, especialmente orientais, choram muito quando morre alguma criança ou algum jovem que, no limiar da vida, teve sua existência tolhida; interrompeu-se bruscamente a vida, sem serem experimentadas as coisas do futuro. Como se fosse direito da juventude viver mais ou que a sociedade tivesse necessidade dela por mais tempo. Tal sentimento diminui à proporção que a idade avança, aos que já estão próximos do fim do caminho. Quanto a isso, a natureza demonstra os quilômetros contados dessa estrada, em sinais de que o caminho está perto do fim. A esses, os orientais brindam a longevidade usufruída, rememorando seus feitos e cantando loas às suas existências. No final do filme Sonhos, de Akira Kurosawa, vê-se um festivo cortejo que realiza o féretro de uma japonesa de 102 anos, com tal motivação.
          Meus respeitos e homenagens aos que já muito caminharam e demonstram cansaço ao praticarem o proverbial “a vida é uma luta”. No Dia de Finados, encontram-se no cemitério vivos e mortos, ou a humanidade. Há até os que vão por lá, ainda de madrugada, para roubarem o mármore que tampa os túmulos; outros para furtarem o bronze das placas e dos crucifixos. Durante o dia, os que retiram as flores que homenageiam os mortos, para revendê-las na porta do Cemitério. E os movidos pelo amor e pela gratidão, que vão lembrar os que eram dignos de viver. Esses elogiados, em Dom Casmurro, por Machado de Assis:” (...) O louvor dos mortos é um modo de orar por eles”.  

 

Damião Ramos Cavalcanti
Enviado por Damião Ramos Cavalcanti em 08/11/2024
Alterado em 09/11/2024


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