Damião Ramos Cavalcanti

Enquanto poeta morrer, a poesia haverá de viver

Textos


Vendo fogos, sem mesa e sem comida

 

          Passadas as festanças juninas, com forró e comidas de milho, lembro que não só as cozinhas judaicas e cristãs celebram festas com pratos típicos, que devêm comidas culturais. Há quem adote a cultura de se comemorar o Ano Novo com peru ao forno ou à Califórnia, tradição repetida anualmente como símbolo do festejo. Nunca vi alguém, por aqui, jantar canjica ou pamonha na entrada de ano, nem mesmo um gostoso espaguete. Outras casas, mesmo com o peru à mesa, não dispensam bacalhau, nem pernil de porco. Reservam tais comidas para o início do ano, como se esses pratos dessem sustança aos doze meses seguintes. Sem ser contra tal costume, a comida dá mais apetite quando sugerida pela vontade de comê-la e não apenas como imposição da festa. Mas a comida da festa aumenta o desejo de comê-la: seu feitio, o seu cheiro, o seu gosto e suas lembranças...

       De repente, como desejo de mulher grávida, que exige do marido procurar pitomba fora de safra. Essas exigências não nascem apenas na gravidez, mas também como fantasias do tempo, da data, do fato como são o batizado ou o casamento, circunstâncias  em que as sogras imperam. Não são apenas os imperadores do Sacro Império, que, na véspera da coroação, pediam certos pratos para fazerem um bom reinado. Costumes como da China, entre centenas de iguarias; como a tradição germânica na qual Carlos III se deliciava com leitão cozido com mel da abadia franciscana, no seu reino.
       Eu, em qualquer festa, prefiro o bacalhau, trazido pelos portugueses ao brasil nativo, à carne enxuta do peru. O sabor que se experimenta está acima de tudo. Por isto, deve-se buscar boas receitas em outras mesas: as bacalhoadas em Portugal; as nobres “brandadas” parisienses; as com molho adocicado dos bretões; as cebolas recheadas com bacalhau picado e amêndoas do infante D. Henrique; enfim, o bacalhau al ajoarriero das ventas castellanas, pedido até do sonhador Dom Quixote ou dos conventos beneditinos, onde se servia esse peixe com acelgas ou repolhos, refogado na carícia e aroma de um suave vinagre. Quando com vinagre, jamais acompanhado com vinho tinto, mas, com um branco não muito seco, graduado. Dizem que o vinagre anula o sabor do vinho rouge. Não esqueço o maître francês, numa das entradas de ano novo em Paris, servindo-me filetes de bacalhau com refinado champanhe.
          Porém, vendo fogos, sem mesa e sem comida, bem perto do mundo dos gourmets, dos cordons bleu, um pedaço da nossa  pátria passa fome, no quotidiano e também diante dessas festanças. Essa realidade serve para se perguntar aos que não têm o que comer: Festejar o quê? Sem comida que caracterize a entrada de uma nova alegria, permanecem eles no ano  que nunca passou. Não acreditam em mudanças, nem de dias, nem de meses, tampouco de ano. Ainda milhões de "brasileiras e brasileiros" restam distantes, ouvindo, quase como insulto, as cantorias, saídas pelas janelas das fartas mesas. E das bocas dos parlamentares, apenas ganância no banquete das emendas e garantias como  “Adeus ano velho, feliz ano novo! (...) Muito dinheiro no bolso, saúde pra dar e vender”.
         Ao povo a fome será a mesma, na monotonia do tempo, confundindo fogos de artifício com sinais que se apagam, desse São João que passou ou na vindoura entrada de Ano Novo...   

 

Damião Ramos Cavalcanti
Enviado por Damião Ramos Cavalcanti em 05/07/2025


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