Damião Ramos Cavalcanti

Enquanto poeta morrer, a poesia haverá de viver

Textos


 Semanas que não são santas
 
 
           Os ovos de Páscoa vinham do Norte, da cidade de Erkelenz, na Alemanha. Não eram de chocolate, mas de verdade, pintados com frutas, coelhos e flores, enviados a Roma pelos amigos “herr” e “frau” Heinen, com outros presentes de Páscoa. Em alguns deles, frases em latim: “Ressurrexit Dominus sicut dixit” (O Senhor ressuscitou como disse); em outros, em alemão: “Frohe Ostern!” (Feliz Páscoa). Receava consumi-los, via-os como símbolos, não como comida. Também sujeito à cultura da minha terra, do costume de não comer ovos cozidos há tantas semanas, provenientes de tão distante, ainda mais com aura do sagrado. Os pacotes chegavam de trem, também trazendo algumas roupas de frio, que usávamos no inverno da Itália.
         
          Antes, muitos anos atrás, em Itabaiana, padre João Gomes da Costa, como era de costume, determinava ao sacristão Bebé cobrir os santos de panos roxos ou pretos, a partir da Quinta-feira Santa, retirados apenas na Missa de Aleluia. E, para expressar mais tristeza, proibia que se tocassem sinos e campainhas. Erlie Amorim disputava, na Igreja, com Raul Xavier quem bateria mais alto a pesada matraca. Balançavam com força puxadores de ferro na tábua, produzindo triste som de funeral. Alguns coroinhas se acanhavam de sair pela calçada com aquela geringonça, no meio do povo; outros, como Amadeu Alcoforado, não largavam a matraca, divertiam-se ao agitarem tabuinhas e alças de metal na prancheta da qual repercutiam secos e repetidos estalos.

         
          J
á em Pilar, nos idos de 1950, somente a abstinência me restou como lembrança da Páscoa.  À véspera do Sábado de Aleluia, meu pai Inácio comprava bacalhau na venda de dona Lita, mãe de Domício Pontes. Eu, Ivan e nossa irmã Marilene dávamos aos pedintes bacalhau, retirando-o do barril de madeira acinturado por aspas de aço e colocando-o nos sacos de estopa dos que assim pediam: “Ô de casa! Meu jejum, pelo amor de Deus!” Nesse dia, tido como de penitência, era quando melhor comiam: jejuavam bacalhoada, acompanhada com bredo e feijão de coco. Por ser tão saboroso, todos adotavam o mesmo “jejum”, seguindo essa prazerosa “mortificação” que, hoje, é iguaria de rico, em semanas que não são santas... Insulei esses acontecimentos, ilhas de minhas lembranças, que superestimo como ritos da Semana Santa, inesquecíveis, vivenciados por nossas almas de criança.

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Damião Ramos Cavalcanti
Enviado por Damião Ramos Cavalcanti em 05/04/2012
Alterado em 08/04/2012


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